Segundo a biografia de Michel Pierre, Corto Maltese nasceu em Malta em 10 de Julho de 1887 filho de uma cigana de Sevilha, belíssima e admirável dançarina de flamenco. A lenda diz que o pintor Ingres esteve perdidamente apaixonado por ela, ao ponto de lhe ter feito um vibrante retrato. O seu pai era um marinheiro britânico, originário da Cornualha, descendente de uma família que tinha por tradição não se alistar na ìRoyal Navyî. O pai de Corto, um marinheiro ruivo e de porte poderoso tinha três paixões - o mar, o whisky irlandês e as lendas célticas.
Não se sabe ao certo quando morreu. Alguns afirmaram que desapareceu no mar, outros que foi assassinado em Cantão, por membros de uma tríade chinesa e por fim houve quem jurasse que terminou os seus dias numa briga sórdida na Austrália. Sabe-se é que frequentou todos os portos do mediterrâneo em múltiplas escalas, tendo numa dessas conhecido a bela cigana de Sevilha, tendo-a seduzido com o seu mau espanhol, contando-lhe lendas do seu país cheias de brumas e sons estranhos.
Cerca dos 10 anos de idade, Corto e a sua mãe foram viver para Córdova, numa casa com um pátio cheio de flores coberto de azulejos árabes. Era lá que Corto lia, escrevia, aprendia espanhol e hebraico, se iniciava no árabe enquanto se esforçava por não esquecer o inglês do seu pai, sempre ausente no mar.
Por essa altura, uma cigana vidente, amiga da sua mãe ao ler a sua mão esquerda constatou que Corto não tinha a linha da sorte marcada. Este, chocado com a descoberta, mal chegou a casa, pegou numa lâmina e de um só golpe traçou a sangue a linha da sorte de uma forma quase perpendicular às linhas do coração e da cabeça.
Aos doze anos Corto partiu para Malta com Ezra Toledano um rabino místico e profundo conhecedor da cabala que transmitiu os seus segredos ao jovem. Graças a Ezra, muito cedo Corto teve uma visão cósmica do universo numa cultura miscigenada pela poesia e lições das Santas Escrituras das biblías hebraicas da renascença e também pelas canções e lendas celtas de seu pai.
A personalidade do jovem Corto desenvolveu-se entre as divindades quotidianas de místicos templos desconhecidos debaixo do sol abrasador de Malta, os livros do seu pai, a bíblia do seu mestre e as histórias sobrenaturais contadas pelos marinheiros no porto de Malta. O seu destino estava traçado para a aventura humanitária, para o imprevisível apelo do mar, feito de inspiração algures entre o sagrado e o profano.
No ínicio de 1904, Corto tinha 17 anos e decide embarcar numa escuna que fez escala em La Valette e que tinha como destino a ásia, passando pelo canal de Suez. Ao largo de Alexandria o telégrafo da escuna recebe a notícia do ataque dos torpedeiros japoneses contra a esquadra russa. Corto permanece até fevereiro no Cairo e em plena guerra russo-japonesa reúne-se aos seus companheiros da escuna e prossegue viagem através do mar vermelho, com escala em Aden, Bombaim, Madras, Singapura, Xangai e Tientsin, onde Corto toma a caminho para Pequim. Pouco tempo depois está na Manchúria, perto da fronteira coreana, no coração dos combates entre russos e japoneses. É aí que trava conhecimento com um jovem jornalista americano, Jack London.
Em 1905 Corto embarca para África, tendo como companheiro de viagem um homem com que se irá cruzar mais tarde noutras aventuras, o russo Rasputine, anarquista e meio louco. A viagem escala Xangai, Hong-Kong, Filipinas e Djacarta. No mar das Célèbes há um motim a bordo, mas Corto, fiel ao seu princípio de intervenção mínima em situações que não lhe digam respeito, assiste à rebelião e acaba com outros marinheiros e Rasputine num bote em pleno oceano, onde são recolhidos por um cargueiro com destino ao pacífico que os deixa em Valaparaíso, no Chile. Daí partem de comboio para Santiago e encontram-se um mês depois na Argentina. Aí travam conhecimento com um dos personagens mais fascinantes da história da América, Butch Cassidy que fazia parte de um bando de foras-da-lei, antigos pequenos criadores de gado arruinados pelos grandes barões do gado. Roubavam os animais aos grandes proprietários e distribuíam-no pelos pequenos criadores, aparecendo como uns ìRobins dos bosquesî contemporâneos.
Corto esteve depois na Europa, mas não há qualquer referência dos seus passos e volta à Argentina instalando-se em Buenos Aires, onde reecontra Jack London e conheçe um futuro escritor, Eugene O´Neill.
Entre 1908 e 1913, Corto continua a sua errância pelo mundo, baralhando as pistas, partindo de um porto quando o julgavam noutro. Poderá ter passado por Marselha, Tunísia e Londres, mas não é certo.
Em 1913 Corto encontra-se ilegal na Indonésia, com um bando de piratas. Mas não é um bom pirata. Prefere a liberdade, a descoberta, a amizade, até o ócio e rejeita a matança e o assassínio. Um pouco de contrabando e tráfico de armas são suficientes para o fazer feliz, saltando entre os arquipélagos indonésios.
O ano de 1914 passa-o Corto ainda no pacífico na ilha Escondida, juntamente com Rasputine e aquela que foi a sua grande paixão, Pandora, participando esporadicamente nalguns combates contra os alemães, tendo em 1915 seguido para a ilha Pitcairn, depois de dois meses de navegação.
A partir desta altura as aventuras de Corto Maltese são-nos apresentadas por Hugo Pratt em forma de BD. O seu primeiro álbum, "Balada do Mar Salgado" surge em Julho de 1967, situando a acção exactamente entre 1913 e 1915.
Seguir-se-iam até à Morte de Pratt em 20 de Agosto de 1995, mais cerca de 25 álbuns que nos descrevem de uma forma absolutamente magistral as aventuras deste marinheiro misterioso e irónico, possuidor de uma enorme maturidade, cultura e sentido humanitário, sempre alinhando com os fracos e desprotegidos mas sem nunca transmitir lições de moral e que percorre os 4 cantos do mundo, desde o pacífico (A Balada do mar Salgado), passando pela Sibéria (Corto Maltese na Sibéria), Turqueistão (A casa dourada de Sarmancanda), África (As Etiópicas, 4 volumes), Europa, América Central e do Sul.
Pratt, juntamente com a personalidade inconformista de Corto Maltese, o seu sentido universalista de quem percorre o mundo de uma forma elegante e marginal ligando o que há de comum entre as pessoas e os povos, deixou-nos também uma extensa e rica galeria de personagens, de onde poderíamos destacar, para além dos marcantes Rasputine e de Pandora, Morgana - deusa das águas na tradição celta, Boca Dourada - vidente e sacerdotisa sul-americana, Tiro Fixo - cangaceiro do sertão, Jeremiah S. - professor, alcoólico e intelectual nascido em Praga, protegido de Corto, entre muitos outros. Mas também todo o ambiente geral, o mar, os atóis e as ilhas são personagens importantes das suas aventuras.
A nível estético e gráfico, Hugo Pratt apresentou sempre o seu alter ego, Corto Maltese com um desenho genial e belíssimo, de traço depurado e consistente, cheio de silêncios e ausências, debaixo de um jogo de sombras a preto e branco poderoso e inimitável, que terão talvez o seu esplendor na "Fábula de Veneza", bem como as belíssimas aguarelas das capas e por vezes das introduções.
Pratt deixou este mundo sem concluir a biografia de Corto, que supostamente terminaria com a sua morte na guerra civil de Espanha, pois segundo o próprio Pratt " ... depois da Guerra civil de Espanha será difícil pensar em grandes aventuras num mundo socialista. É possível pensar nisso num mundo povoado de comunistas ou de anarquistas mas não num mundo socializante ... [porque] ... os socialistas são sempre reformistas, passam a vida sentados em volta de uma mesa a falar de reformas, da divisão de poderes e de coisas como essas. É uma catástrofe. Não se pode casar o mundo operário e a aventura. É como pensar numa ligação entre uma família católica e o catolicismo e a aventura. Não resulta, porque o aventureiro é sempre alguém pronto a dar cabo de tudo.".
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